Alma Guia

Enquanto estava observando as pessoas ao meu redor, sem perceber comecei "ler os pensamentos" delas. Um homem dizia para a sua mulher que a amava muito, mas nos pensamentos dele era de maldade. Só estava usando-a para mostrar aos amigos que ele podia mais do que qualquer um. Ela toda ingênua com um sorriso tão meigo acreditava nas falsas palavras daquele homem. Espero que um dia ela perceba quem seu marido é.
Eu me sentia inútil por ter "escutado" e não poder ter ajudado - iriam me achar paranoica por falar que tinha lido os pensamentos dele.
Minutos se passaram e meu corpo continuou intacto ali no meio da rua, como se eu fosse um espectro. Pessoas passavam por perto e não notavam a minha presença.
Ainda no mesmo lugar eu vejo um homem sentar em um dos bancos da praça de cabeça baixa. Resolvi "ler os pensamentos" daquele homem. 
Ele acabara de perder sua família em um acidente e agora não há ninguém. Se tornou um homem só e por este motivo, seus pensamentos eram todos errados. Então resolvi tentar ajudar ele. Me levantei e segui em direção a ele. Sentei-me ao lado e perguntei se queria ajuda, mas ele olhou para os lados se encolhendo de medo e começou rezar em pensamento, pois tinha a certeza de que era alguém de sua família querendo se comunicar. 
Eu não entendia o porquê dele não me ver e nem me ouvir. Eu estava morta e não sabia? Qual a causa? Eu estava totalmente sem entender. É como se eu tivesse perdido a memória antes da minha morte. Queria saber o motivo. Quem sabe um dia eu descubra... 
Fiquei observando-o durante toda a noite e ele estava com pensamentos muito mais ruins, estava desolado. Coloquei minha mão sobre a do homem fazendo com que ele pulasse de susto, mas logo tirei minha mão, não queria assustar mais ainda. Tirei minha mão e fiquei observando cada movimento, cada pensamento. A partir daquele momento eu me decidi que guiaria ele para um caminho melhor. 
Fiquei o tempo todo ali com ele. A madrugada estava fria e úmida. Então dei o primeiro passo: guiei-o para voltar pra casa. Seria difícil, mas eu estaria ali para ajudá-lo. Encostado no banco, respirou fundo, se levantou e então decidiu voltar. 
Seus caminhos eram lentos e pesados. Eu estava em seu lado direito sempre o guiando. Cinco quarteirões depois nós chegamos em sua casa e logo entramos. Sua casa era enorme! Totalmente branca assim como alguns móveis, os demais eram na cor preta. Quando entrei na sala e vi as fotografias logo lágrimas vieram, mas uma em especial tocou fundo o meu coração, uma foto da família reunida. Uma garota que aparentava ter 10 anos de idade e sua esposa que era muito linda com aparência de 40. Respirei fundo quando ele se aproximou da imagem de sua família, mas minha atenção voltou aos seus pensamentos que tornaram a ficar ruins, imediatamente guiei-o para que lembrasse apenas dos bons momentos com sua família. Dito e feito, ele sorrira pela primeira vez. Devolveu a fotografia para o móvel, respirou fundo e foi para o seu quarto que inclusive era enorme. Um tom de cinza bem claro. Ele abriu seu guarda-roupa e pegou o primeiro pijama que viu e foi para o banheiro. Enquanto ele tomava seu banho eu fiquei sentada na poltrona branca de couro, que ficava ao lado esquerdo da cama. Meu coração se apertava ao ouvir seu choro, seu lamento, mas eu sei que vou conseguir ajuda-lo. Tempo depois ele saiu do banheiro, passou seus produtos e se jogou na cama. Deixei-o chorar tudo o que precisava, pois assim o aliviaria. Acabou dormindo e eu fiquei ali pra vigiar. Em seus sonhos eu somente coloquei coisas boas. 
Amanheceu e ele acordou com seu despertador, provavelmente para ir ao trabalho. Levantou-se com uma certa dificuldade e foi para o banho. Fiquei feliz quando vi saindo todo arrumado com seu elegante paletó. Seu cabelo afro todo arrumado, seu perfume doce, seu relógio muito chique na cor prateada. Estava um deslumbre. 
Depois do último ajuste em seu paletó, pegou sua maleta e seguiu para a cozinha. Sua cozinha era enorme. Os utensílios de inox e alguns pretos. Então concluí que sua profissão era de um escalão importante.
Enquanto tomava seu forte café, lágrimas tornaram a cair em sua face e acabei chorando junto. Sentei na mesa um pouco distante para não o assustar e fiquei apenas analisando-o. Depois de seu último gole, se levantou, seguiu até a pia com passos lentos e lavou sua xícara com a maior delicadeza do mundo. Me admirava sua calmaria, sua paciência. Em seguida pegou sua maleta, seguiu para sua sala e pediu um táxi. Logo escutamos uma buzina. Foi para o táxi e disse o endereço de seu destino. Não era tão longe de seu trabalho. Pagou o motorista e saiu do carro.
O lugar era enorme e lindo. Entramos e ele foi assinar sua entrada. Eu resolvi fazer uma travessia saudável, então esperei ele se distanciar e assoprei todas as folhas do balcão e gargalhei com a expressão assustada da secretária arrumando os papéis para que ninguém notasse a estranha atividade. Corri para não perder meu amigo de vista e tive a sorte de encontra-lo. Estava conversando com um Senhor magro e de estatura baixa. Ele estava consolando. Me aproximei e prestei atenção na conversa, era sobre uma venda, não consegui saber do que, talvez fazia parte de seu trabalho. 
Após se abraçarem, seu amigo agradeceu pelas palavras e pediu o elevador, entramos e 5 segundos depois o elevador parou. Acompanhei até seu escritório. O corredor era tão chique que nem parecia ser um lugar de trabalho e sim uma casa de uma pessoa milionária. Totalmente branco, com lustres dos mais caros, com um tapete de veludo na cor preta. Então notei que nas dez portas do corredor haviam uma placa. Quando li uma delas, descobri do que se tratava. O rapaz que sigo se chama Antônio e é advogado. Ele entrou em seu escritório, fechou a porta e pendurou ao lado o seu paletó. Colocou a maleta em sua mesa e respirou fundo antes de começar seu trabalho. Notei que em sua mesa possui uma foto dele com sua esposa e filha. Uma família tão linda. Seu escritório era de tamanho médio, bem aconchegante, na cor marrom. No lado direito havia uma enorme prateleira branca com muitos livros de sua área e alguns pessoais. Ao lado tinha alguns quadros, de seu diploma, vestido de beca e outros de artistas variados. Em sua mesa possui um computador, um porta-caneta, a fotografia e alguns papéis. Por último, atrás de Antônio havia uma enorme janela que clareava o escritório todo. 
Sabendo que ali ele estava bem e com sua mente ocupada, pude me despreocupar, mas ficarei atenta. Antes de começar seu trabalho, beijou a fotografia, respirou fundo e iniciou seu trabalho.  
Já era 15h00 e ele estava em uma ligação. O assunto era a venda novamente. Me surpreendi ao escutar que estava decidido em vender sua casa, pois era muito grande para ele. Disse que os móveis eram presentes. Pediu para que a pessoa fosse até seu escritório pra assinar o contrato. Casa vendida, vida nova. - disse em pensamento. Era triste saber que ele venderá onde passou todos os momentos com sua família, mas eu o entendia. 
Uma hora depois a pessoa que comprou sua casa estava em seu escritório assinando contrato. Era uma mulher muito linda, de cabelos longos e vermelhos. Mais alta que Antônio. Ficaram conversando por um longo tempo sobre a casa. 
Quando deu 18h00 estava organizando seu escritório para ir embora. Como seria final de semana, arrumaria algumas coisas de sua casa. Digitou o número do táxi, mas decidiu ir de ônibus. Pegou suas coisas, trancou a porta e saiu. Naquele horário o corredor ficava um pouco assustador, mas nada que me fizesse arrepiar ou querer sair às pressas. Seus passos eram lentos de novo, notei que seus pensamentos eram de tristeza, mas eu não quis interferi-lo, dessa vez decidi deixa-lo sentir a saudade. Parou em frente ao elevador. Entramos e assim que a porta se fechou, lágrimas escorreram como uma cachoeira. Me cortava o coração, gostaria muito de abraça-lo, mas sei que o assustaria. Aproximando do andar ele limpou seu rosto e colocou um sorriso em sua face. 
A porta se abriu e ele foi em direção a secretaria para assinar. A mulher que assustei ainda estava lá, então não perderia essa oportunidade. Esperei Antônio assinar e quando se distanciou do balcão, eu assoprei as folhas novamente. A expressão era hilária, gargalhei enquanto ela juntava as folhas. Saí antes de perder meu companheiro de vista. 

Depois de uma longa caminhada, chegamos ao ponto de ônibus. Quando olhei para o lado, me senti extasiada, pois a moça que o marido a enganava estava ali, sozinha e muito mais feliz. Sem querer li seu pensamento e acabei descobrindo que terminou seu relacionamento. Descobrira uma horrível traição. 
Por que não colocar um no caminho do outro? Percebi que o ônibus estava se atrasando, então fiz o relógio dele parar de funcionar. Perfeito. Perguntou o horário para a moça que respondeu e então começaram conversar. Em seus pensamentos haviam uma coisa em comum: ambos pensaram que poderiam ser grandes amigos. Ficaram conversando até o ônibus finalmente chegar. Passaram seus telefones e desejaram boa noite. Meu plano tinha dado certo! Notei que se sentiram bem na companhia do outro.
Quando entrou em sua casa se jogou no sofá e encarou o teto por alguns minutos, ficou por ali durante um tempo e levantou para tomar banho. Fiquei na poltrona no aguardo. Confesso que me apaixonei pela poltrona. Logo ele saiu do banho, mas levei um susto quando notei que saiu sem a toalha e nada por baixo. Encarei o chão até ele vestir algo e para minha sorte, o fez. Respirei aliviada e tornei a olha-lo novamente. Estava deitado na cama com seus pensamentos bagunçados. A venda de sua casa, a moça que conhecera e claro, sua família. Eu entendia que perder as pessoas que mais amamos dói. Ele estava sem fome, então logo dormiu. Eu fiquei atenta para que ele não sonhasse com coisas tristes. Mas ele acabou nem sonhando, melhor ainda. 
No dia seguinte acordou bem cedo. Se levantou e foi tomar banho. Para que eu não levasse mais um susto, fiquei fora do quarto. Enquanto isso, fui para a sala e fiquei esperando. Minutos depois ele saiu do quarto, estava com um short preto, uma camiseta branca sem estampa e de chinelo. Foi para a cozinha e preparou um café reforçado. Seu pensamento estava em onde começaria guardar, então dei uma ajudinha, o fiz decidir começar pela sala já que é um lugar onde ele menos fica. Tomou seu café, lavou a louça e foi para a garagem pegar as caixas. Como os móveis serão presentes, não teve muito trabalho. Apenas guardou suas fotografias, sua tevê e alguns aparelhos dos quais não ficava sem. Guardava com a maior delicadeza e eu admirava tanto. Passou metade da manhã organizando suas coisas. Assim que terminou, pôde notar a diferença e o vazio que a casa estava, mas seria por pouco tempo já que estava tudo acertado para mudar. Depois de guardar suas coisas, fez uma limpeza na casa toda – eu o admiro muito por essa coragem, a casa é enorme – quando terminou, foi preparar seu almoço e enquanto preparava, ligou para a moça que conhecera no dia anterior. Durante a conversa, descobri que o nome da moça era Regina. Ficaram conversando por bastante tempo, marcaram de irem a um bar mais tarde para se conhecerem melhor. O pensamento de Antônio era tão cavalheiro que me enchia de orgulho. Combinaram o horário e o bar. Desligaram e ele foi almoçar. 
Após o almoço, Antônio descansou um pouco. Ficou assistindo filmes de terror. Disso eu entendo bastante. Acabou cochilando e acordou 18h30min, se levantou e foi se arrumar. Saí do quarto e fiquei na sala novamente, não queria me constranger. 
Dessa vez demorou mais para se arrumar e quando saiu do quarto eu me levantei e aplaudi, estava lindo! Notei que ele olhou para os lados procurando o barulho, mas logo deixou de lado. Fiquei aliviada. Estava muito bem arrumado. Com uma calça e camisa social na cor branca, seu sapato preto também era social. Passou seu perfume favorito.  
Pegou suas chaves, trancou toda a casa e saiu. Foi para o ponto de ônibus, como haviam combinado. Algumas caminhadas depois, chegamos. Ela estava deslumbrante. Com um vestido preto abaixo dos joelhos e um sapato não muito alto. Cumprimentaram-se e ficaram conversando até o ônibus chegar, que demorou apenas alguns minutos. Entraram e sentaram-se juntos. Conversaram sobre como foi o dia. 
Logo chegaram onde haviam marcado. Sentaram-se em uma das mesas do lado de fora e imediatamente o garçom se aproximou. Fizeram seus pedidos e começaram conversar. 
A partir dali suas vidas mudariam. Antônio mudou para a sua nova casa e foi para um escritório que lhe deu mais reconhecimento de seu trabalho e se tornou melhor amigo de Regina. Regina encontrou o amor de sua vida, um homem que tratava como merecia e mudou-se para onde se sentia bem. 
E eu me tornei a fiel guia dele.

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